Não há um único brasiliense que não tenha se sentido energizado ao observar o céu de Brasília. O mar de nuvens brancas, assim como os traços arquitetônicos de Niemeyer, as quadras e eixos de Lucio Costa, bem como a pluralidade das regiões administrativas, são fontes inesgotáveis de inspiração para artistas do Distrito Federal e de todo o Brasil. Em 63 anos de existência, a serem completados nesta sexta-feira (21), centenas de músicas e poemas surgiram para homenagear a nova capital.
“O que faz de Brasília uma cidade tão inspiradora é o fato de ela ser, além da capital de todos os brasileiros, tão acolhedora a todos, independentemente de estarem no centro ou nas periferias”, avalia a subsecretária de Difusão Cultural e Diversidade da Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Secec), Sol Montes. “E por que tanta arte sobre a cidade? Porque aqui cabe qualquer conceito de arte, cabe qualquer manifestação. Brasília aceita qualquer cultura sem nenhum preconceito, nenhuma reticência. É isso que a faz tão inspiradora”, completa.
A primeira canção sobre a capital foi escrita por Tom Jobim e Vinícius de Moraes, em 1960. Água de Beber nasceu a partir de uma curiosidade de Tom. O músico queria saber se o olho d’água nas proximidades do Catetinho era potável, ao que um trabalhador teria respondido: “É água de beber, sim, senhor”. Antes, Tom e Vinícius criaram Brasília, Sinfonia da Alvorada, um poema sinfônico que celebra a criação da cidade.
De lá para cá, outras músicas apareceram, nos mais variados estilos: reggae (Te Amo Brasília, de Alceu Valença, e Surfista do Lago Paranoá, sucesso do Natiruts), rock (Saquear Brasília e Brasília, gravadas por Capital Inicial e Plebe Rude, respectivamente), balada (Brasília, de Guilherme Arantes), viagem experimental (Céu de Brasília, com Toninho Horta e Orquestra Fantasma), sertanejo (Pagode em Brasília, de Tião Carreiro e Pardinho), blues (Brasília, de Sérgio Sampaio), romântica (Coisas de Brasília, de Oswaldo Montenegro) e instrumental (Suíte Brasília, de Renato Vasconcelos).
Para a profissional de relações públicas Patrícia Resende, 49, as melhores canções sobre a cidade são as produzidas pelas bandas de rock. “Sou dos anos 1970, mas uma curtidora dos anos 1980”, afirma. Entre as favoritas, estão Eduardo e Mônica e Faroeste Caboclo, ambas da Legião Urbana, entre outros sucessos de Capital Inicial e Plebe Rude – grupos que surgiram em Brasília.
Filha de um baiano e uma mineira, Patrícia diz se considerar uma brasiliense legítima. “Sou a caçula de quatro irmãos e nasci aqui. Meus dois filhos e neto também”, conta. “Amamos a cidade e sempre estamos curtindo o que é democrático, público, que cabe todo mundo e que realmente é o cartão-postal e a cara de Brasília. E já dizia Renato [Russo]: ‘Meu Deus, mas que cidade linda’…”.
Morador de Ceilândia, o mecânico de motores Felipe Junior Andrade, 31, também aproveita o tempo livre para curtir a cidade. “Gosto muito de ir aos pontos turísticos, tirar fotos, observar”, diz ele, que é pai de dois meninos, de 6 e 8 anos. Para Felipe, a música que melhor retrata a iconicidade do DF é Não Troco, do Hungria Hip-hop. A letra diz: “Eu não troco por duas Miami ou Paris/ A metade da minha Ceilândia”.
Já a criadora de conteúdos digitais Ana Lucia Rocha, 39, não tem uma música preferida que fale sobre Brasília. Na verdade, gosta da canção Uma Brasileira, dos Paralamas do Sucesso, que, segundo ela, retrata bem o antes e depois de ela ter chegado na capital federal. “Quando vim, era bem xucra, e hoje sou bem espevitada”, brinca.
A letra original diz: “Rodas em sol, trovas em dó/ Uma brasileira, ô/ Uma forma inteira, ô/ You, you, you/”. Mas, como uma forma de aproximar a canção às próprias vivências, ela improvisa uma nova versão: “Rodas em sol, trovas em dó/ Uma brasileira, ô/ Vinda do interior, ô/ You, you, you/”, canta, alegremente.
Ana veio para o DF quando tinha 15 anos para trabalhar como babá. “Costumo falar que é a capital do meu coração. Sou tocantinense, mas sou apaixonada por Brasília e não consigo ficar longe daqui”, pontua. “Minha relação com Brasília é muito especial. Cada cantinho me alegra e me deixa feliz, não passo muitos dias sem vir nos pontos turísticos, andando no centro da cidade”.
Folha em branco
Fonte de inspiração, Brasília também rende verso e prosa. O poeta Nicolas Behr que o diga. Nascido em Cuiabá (MT), veio para a capital em 1974 e tornou-se, a partir de 1977, uma das principais vozes da poesia marginal brasiliense. Atualmente, soma oito obras sobre a cidade, sendo que a mais recente é o livro As superquadras invisíveis de Ailisarb.
“É uma cidade cheia de simbolismos, que permitem muitas associações e as criações partem disso”, explica o poeta de 65 anos. “Quando cheguei aqui, com 14, 15 anos, Brasília era uma folha em branco. E fui privilegiado por ter chegado tão cedo. A cidade tem quase a minha idade, e isso é uma sorte”, completa.
Morador do Plano Piloto, Nicolas viveu as grandes aventuras da juventude nas asas Sul e Norte. Uma das experiências está impressa no poema Travessia do Eixão, de 1979, sobre o trajeto da casa de Nicolas à da namorada Noélia, entre a 415 Sul e a 109 Sul. Os versos foram musicados por Nonato Veras, integrante do Liga Tripa, e imortalizada pela Legião Urbana no disco póstumo Uma Outra Estação (1997).
Um outro poema, Eixosa, também colocou em palavras as sensações e impressões causadas por Brasília em Nicolas: “Naquela noite/ Suzana estava/ mais W3 do que nunca/ toda eixosa/ cheia de L2/ Suzana, vai ser superquadra assim/ lá na minha cama”.
“Já falei muita coisa sobre a cidade e tento continuar indo pelo original. Existem várias Brasílias: a do poder, das periferias, das satélites, a formal, da rapaziada, a subversiva e underground. Não há um poema que traduza a cidade; Brasília é caleidoscópica”, enfatiza o artista.